Aquele Ali Não Segue Mais Viagem.

󰃭 2025-09-11 (updated: 2025-09-11 )

Manhã

Todo trajeto tem um “meio”. Não é o meio geográfico real, nem o meio temporal. Existe um meio pessoal. É uma ponte, uma estrada de terra, uma elevação na calçada, a casa de alguém que você já amou, um poste queimado, uma fábrica antiga… Algo que te faz saber que, daqui para frente, estamos mais perto do final do que longe.

Já saindo da primeira e maior avenida, o carro entra no anel viário. O engarrafamento, tão incomum nessa via, nos pegou desprevenidos: todos os carros estavam parados. Caminhões se viam dezenas de metros atrás e à frente, imóveis. Não havia como dar ré.

Nada demais, não estou atrasado.
Meu pai, à minha esquerda, parece mais estressado que eu.
Os carros andam um pouco.
Tempo parado é tempo de pensar.
Ainda estou me recuperando da volta daquela sensação recorrente.
O caminhão de carnes tenta invadir pelo acostamento.
Sigo insatisfeito com meus relacionamentos, seja o amoroso, os familiares, as amizades.
Meu pai se dirige à esquerda. Como de uma torneira aberta, motos saem como água.
Me sinto estagnado, perdido, sem visão, olfato ou audição. Meus membros dormentes não possuem mais tato.

Ofereço abrir o Waze no celular dele para ter uma noção melhor; não gosto de abrir esse aplicativo no meu celular.
Não tenho força nem para o básico, como escovar os dentes ou beber água. Tudo parece em vão. Sair da cama parece um desrespeito — mas não comigo.
O aplicativo mostra que houve um acidente grave.
É óbvio que não tenho nada para me dar por satisfeito. Não faço nada. Pelo menos dormir continua fácil.

A prova é no segundo horário. Sem problemas.
O mapa mostra a via em vermelho; aparentemente, o caminho retorna ao normal depois da passagem superior.
Odeio provas, odeio testes, odeio perguntas.
Um ícone avisa que o acidente foi a 30 minutos, outro mostra 40. O mais antigo mostra 1 hora de idade.
Para que responder se não tem nada para responder? Nada em mim para descobrir?
Ao nosso lado, um Uno (Way, não Mille), com o retrovisor arrancado.
Tanto faz o conteúdo da prova. Nunca vou ter confiança para ir sem ansiedade. O dono chega, tenta às pressas consertar o retrovisor. Do ângulo, o capô está elevado como quem bateu de frente. Ele entra no carro e dá partida.
Não faz sentido: o Waze é bem preciso, a colisão real deve ter sido mais à frente.

Um Palio (Fire, não Attractive) corta a frente de um caminhão.
Para onde eu vou? Se o medo de errar me paralisa?
“Vai bater? Vai bater!”
Meu medo de agir, minha inércia.
O caminhão, com a cabine alta, colide com o carro. O motorista olha para trás; A mulher e o filho parecem assustados.
Seja qual for a pergunta, não saberei responder. Em marcha lenta, os carros da junção misturam-se com os da nossa via. Tudo vira uma bagunça.
Preciso me acalmar. Preciso respirar mais.
Passamos pela polícia estadual, expressões de nervosismo amenizadas pelo costume.
Preciso correr. Já perdi muito tempo. Estou muito atrás.

A avenida está vaga daqui em frente.
Uma moto descansa à esquerda.
Uma bicicleta destruída à direita.
Preciso fazer algo urgentemente.
Às 7h51 da manhã de uma quarta-feira, coberto por um saco pálido, um corpo repousa no asfalto.

Pela primeira vez em muito tempo eu estive atento, a realidade não era mais como sonho. Estava presente: vi, ouvi e senti. Não é a primeira vez que vejo alguém assim. Lembro da minha avó, primeira vez que chorei por alguém que morreu, e lembro do meu melhor amigo, que foi o mais recente. Ambos tinham uma felicidade artificial no olhar, não estavam mais lá há muito tempo. Os dois já não eram mais do que carne e ossos.

Esse não. Era possível sentir o calor do seu corpo atravessando a porta do carro. Cada vida guarda uma história inteira. O saco cobria mal sua cabeça, deixando mostrar sua ferida na testa, sangue fresco, cabelos intactos. Se não fosse pelo sangue, estaria dormindo.

“Aquele ali não segue mais viagem”. É só isso? Nem 30 segundos de silêncio? Quero dizer, mesmo o acidente tendo ocorrido há pouco mais de uma hora, eu esperava um pouco mais de… respeito? Talvez devamos guardar as lágrimas para os vivos, com os quais ainda temos dívidas a cumprir.

Egocentrismo, assim como tantas outras coisas, é privilégio dos que vivem.
Portanto, estar ansioso, assim como tantas outras coisas, parece muita arrogância.

Se tudo que me afastaria da estagnação depende apenas de uma escolha, parece errado estar ansioso ou estressado. Tudo acaba convergindo para o mesmo funil. Do pó viemos e ao pó vamos todos com certeza retornar. Não faz sentido prender o fôlego.

Hoje é o fim de algo. Amanhã também. Agora, já no outro dia, que sejam fins e inícios.